O AR – 6ª Festival de Cinema Argentino realiza-se de 21 a 24 de Julho no Cinema Trindade no Porto. Depois de ter sido cancelado em 2020 e várias vezes adiado em 2021, o cinema argentino continua vivo e vai respirar-se finalmente no Trindade este verão.
Normalmente o AR funciona como uma janela aberta, uma radiografia do ambiente — sempre dinâmico e estimulante— do cinema de autor argentino contemporâneo. Neste caso, e depois de um 2020 (e boa parte de 2021) que nos afastou fisicamente das famílias e amigos, será dado um destaque especial aos afectos. Nesta edição o panorama é composto por várias primeiras obras que pensam e refletem sobre os laços familiares, amorosos, de amizade, entre mães e pais e filhos, laços afetivos que se nutrem com lugares, espaços e determinados tempos. São onze filmes que dialogam uns com os outros, estabelecem afinidades, destapam leituras inesperadas, começam e continuam conversas que parece que esperam ser completadas. E haverá uma estreia, uma secção dedicada ao cinema de animação para toda a família que vem para ficar, o Arzinho. Espaço de cuidado e de amor —mas também de solidão— a família é um conceito que está em permanente transformação. E é precisamente esse o eixo ao redor do qual giram os filmes programados nesta edição.
As relações de parentalidade são o eixo central de Las Buenas Intenciones de Ana García Blaya que revela, com uma graça aguçada e imensa ternura, o contexto social derivado de outra profunda crise económica na década de 90. Outra época, outra crise e assim se constrói parte da idiossincrasia argentina da classe média há muitas décadas: sobrevive. Um pai e uma mãe divorciados, três filhos pequenos (com um destaque especial para a extraordinária Amanda Minujín), uma família a fazer o que pode numa combinação de ficção e de arquivo doméstico da própria realizadora.
A morte no seio de uma família é o acontecimento que dispara uma grande primeira obra, Familia Sumergida de María Alché (conhecida em Portugal como a protagonista de La Niña Santa de Lucrecia Martel). A realizadora representa com engenho e luz as mudanças nas relações da sua protagonista, a enorme actriz argentina Mercedes Morán, e desenvolve a forma como, logo após a morte da sua irmã, esta mulher se redescobre a si mesma e ao que a rodeia.
Uma perspectiva familiar algo subversiva é proposta através do olhar de Gustavo Fontán em La Deuda, um filme que coloca o foco no paradoxo de sentir-se longe das pessoas mais próximas num momento de incerteza económica cujas consequências inevitavelmente se cravam no plano familiar. Este é o mais abertamente narrativo trabalho da filmografia de Fontán, com produção de Lila Stantic e dos irmãos Almodóvar.
Entretanto, a singular primeira longa metragem de Lucio Castro, Fin de Siglo, que começa por parecer uma típica história de um-tipo-conhece-outro-tipo mas devagar se vai revelando como uma análise sobre o tempo, a identidade, a memória e o desconcerto. E no meio, a vida a passar, com toda a sua beleza e energia.
O contexto social atravessado pela pandemia transformou também os quotidianos familiares à escala mundial e este acontecimento encontra o seu eco nos filmes mais recentes. É o caso, justamente, do filme de abertura desta edição, La Edad Media, co-dirigida pela parelha artística Luciana Acuña e Alejo Moguillansky, que também actuam, escrevem e produzem. Esta família encontra na quarentena e na incerteza profissional o terreno fértil para embarcar numa comédia que parte do quotidiano – real e surreal – para se abrir à dança do absurdo, ao som de uma cuidada e inventiva banda sonora. Por outro lado Qué Será del Verano, de Ignacio Ceroi, pensa o isolamento e a quarentena como condições de possibilidade. Trabalha com material de arquivo familiar found-footage perante a impossibilidade de sair para filmar, e constrói um documentário que também é uma celebração de possibilidades narrativas da linguagem audiovisual.
E se um grupo de pessoas se reunisse há dezoito anos num mesmo café a ler o mesmo livro uma e outra vez numa espécie de catarse colectiva e renovável? Isso é El Tiempo Perdido de María Álvarez, que celebra o encontro, a sensação de família fora do sangue. Numa homenagem ao espírito de uma Buenos Aires literária e intemporal, Álvarez resgata a arte como algo que nos une, conforma e, muito provavelmente, nos salva a todos.
O cinema preocupado com a História, a política e os vínculos entre o passado e o presente da luta dos trabalhadores pelos seus direitos, tem em Río Turbio um exponente único. A partir de um evento autobiográfico, a realizadora Tatiana Mazú González desenvolve um tom experimental, formalmente lúcido, que ilumina as pontes invisíveis entre as diferentes militâncias e gerações.
Finalmente, poderiam haver 36 maneiras de concluir esta programação mas sabemos, isso sim, que No existen 36 maneras de mostrar cómo un hombre se sube a un caballo, tal como garante o sui generis e delicioso ensaio cinematográfico de Nicolás Zuckerfeld que analisa, a partir de alguns filmes de Raol Walsh, estruturas e formas do cinema clássico. Uma pequena odisseia transformada numa imperdível homenagem ao cinema que somos todos.
A secção Arzinho estreia-se nesta edição especialmente dedicada aos afectos e é composta por dois filmes de animação para toda a família que revelam a riqueza e inquieta expansão do cinema de animação argentino. São filmes para o encontro na sala de cinema, para levar filhos e pais e sobrinhos e amigos de todas as idades. El Patalarga de Mercedes Moreira é uma aventura, nobre e divertida, de três amigos valentes, realizada em “cut out” (figuras em papel e imagens fotografadas de cima e montadas). Ánima Buenos Aires de María Verónica Ramirez revela, através de quatro histórias criadas por destacadíssimos nomes da animação e da gráfica argentina, uma Buenos Aires cheia de charme, de mistérios e de personagens ocultos espalhados pelos cantos de uma cidade realmente encantadora e mágica.
A urgência de pensar a realidade, o olhar atento, às vezes desiludido mas sempre curioso, convive, entre primeiras obras e realizadores consagrados, com as procuras estéticas mais ousadas. Os afectos —e a falta deles—, esse imenso campo aberto por onde passeamos todos, as memórias, os laços que se constroem, conservam, perdem e recuperam, unem este conjunto de frescos e vão encher de ar (e de arzinho), de vitalidade e de beleza, novamente com sotaque argentino, o Cinema Trindade entre 21 e 24 de Julho.
Moguillansky, engenhoso e agudo realizador, e Acuña, não menos engenhosa e aguda bailarina e coreógrafa, escrevem, produzem e actuam neste filme de espírito caseiro com a pandemia da Covid 19 como pano de fundo. A quarentena transforma seriamente o quotidiano de uma família de artistas que deve engendrar novas formas de trabalhar e ganhar dinheiro. Longe de se converter num drama ou denúncia, La Edad Media amplia esta vivência como se de uma comédia absurda se tratasse, aberta às derivas musicais e dramatúrgicas que vão desde Beckett a uma enternecedora actuação canina. Um filme simples sobre coisas complexas que acaba de vencer o prémio a melhor longa-metragem na competição argentina do 23º BAFICI.
21h30
Um clássico café de Buenos Aires é o espaço para um encontro peculiar que se dá há vários anos. Um grupo de pessoas da terceira idade reúne-se de forma metódica, congregados por uma obsessão em comum: ler e discutir Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust. Com a sua sempre afectuosa atenção e delicado olhar, María Álvarez, realizadora do especialíssimo Las Cinéphilas (4º AR), consegue capturar neste documentário não só a beleza do acto da leitura em si, mas também algo profundamente humanista, como é o prazer de partilhar uma experiência sublime com o outro.
A primeira coisa que vemos são homens montados num cavalo. Imagens seleccionadas de vários westerns do Hollywood clássico no que parece ser um exercício de found footage, mas Nicolás Zuckerfeld vai muito mais longe: A partir de uma misteriosa citação de Raoul Walsh, o documentário abre-se e converte-se num trabalho quase detectivesco que recorre com paixão cinéfila entrevistas, livros, pessoas, traduções falhadas, filmes e mais filmes; para tentar descobrir e entender uma maneira de pensar o cinema que por momentos pareceria perdida para sempre.
19h30
Ignacio compra uma câmara digital em segunda mão para registar as férias e no seu interior encontra um cartão de memória esquecido carregado de imagens que se convertem no disparador de uma expedição rumo a uma intimidade desconhecida. Manifestações em Paris, viagens pela selva africana, os afectos de outro. Tudo pode conviver nas vidas paralelas, reais ou imaginárias, deste filme (Melhor Filme Argentino BAFICI 2021), com uma liberdade explosiva que vai em busca dessa semente ficcional guardada no coração de alguns registros documentais.
21h30
Enquanto a sua família vive num apartamento de um subúrbio de Buenos Aires onde as plantas compõem uma espécie de recife de corais, Marcela ocupa-se da vida que a sua irmã deixou ao morrer. A intimidade que desenvolve com o Nacho dá cor ao luto que vive com ilusão e mistério. Nesta primeira longa-metragem, Alché pinta com destreza o quotidiano familiar e destaca o seu epicentro: uma viagem íntima, feminina, aqui e ali, fantasmagórica. Por outro lado, reivindica formas de conhecimento descredibilizadas pela razão e, com um humor agudo, desafia a “honra” de certos afectos.
Um bandoneón lança notas no ar e o seu som evoca de maneira tão misteriosa como inequívoca a cidade de Buenos Aires. Uma verdadeira seleção de autores de banda desenhada e de animação argentinos tecem este retrato coral acompanhados pela música de Rodolfo Medeiros. Ánima Buenos Aires é uma viagem poética e profundamente autoral pela idiossincrasia rioplatense, as suas ruas, as suas personagens e a sua História. Com um humor que não distingue idades e uma combinação de técnicas que vai desde a animação tradicional em 2D, à foto-montagem de stencils, trata-se de um conjunto de curtas cheias de virtuosismo e beleza.
19h30
Se o primeiro filme de uma filmografia é ao mesmo tempo apresentação e declaração de princípios, este trabalho de García Blaya mata dois coelhos de uma cajadada só. Aproveitando como matéria prima a sua própria infância –a separação dos seus pais e uma mudança de país- constrói não só um comovedor retrato familiar, mas também a radiografia de uma sociedade moldada pelas crises económicas e pelas suas paixões populares. A realizadora une ficção com material de arquivo caseiro e consegue o milagre característico daqueles relatos íntimos especiais: ser universal.
21h30
A escuridão envolve o rosto de Mónica enquanto procura dinheiro numa noite que parece não ter fim. Os seus gestos deixam ver que esta viagem não a faz pela primeira vez e que a dívida que tem para pagar vai para além de uma formalidade bancária. Esgotar as possibilidades também passa por provocar encontros que desafiam a vulnerabilidade da personagem através dos olhos perseverantes da actriz Belém Blanco. La Deuda lembra-nos que nas trevas mais profundas das relações humanas também existem clarões de amor que podem aparecer como a alva de um novo dia.
Depois de almoçar, quando as tardes quentes e calmas vão chegando, as aldeias entregam-se a um desses prazeres milenários: a sesta. Só os miúdos, com as suas brincadeiras e gritarias, poderiam interromper este momento de paz. Mas uma criatura assustadora encarrega-se de os impedir, o Patalarga. Esta primeira obra de Mercedes Moreira conta a aventura de três amigos, Teto, Maru e Ramón, que um dia decidem ser valentes e lutar pela verdade. Uma história encantadora, genuína e nobre, realizada em “cut out” (figuras em papel e imagens fotografadas de cima e montadas), que reflete o panorama rico e em inquieta expansão do cinema de animação argentino.
19h30
Por entre material de arquivo familiar, transmissões de rádio ou mensagens de Whatsapp, Río Turbio não se limita a documentar um capítulo da História sindical argentina que aconteceu há algumas décadas numa povoação remota da Patagónia, mas consegue algo bem mais difícil: iluminar as pontes entre as lutas do passado e as do nosso presente. Mazú entende que tal como a militância pode e deve adquirir diversas formas para conseguir as suas conquistas, o cinema deve abraçar ideias visuais e sonoras igualmente revolucionárias quando se propõe tornar visível o invisível.
21h30
Chegar a uma estação, andar pelas ruas, entrar num apartamento alugado temporariamente, abrir o frigorífico. O quotidiano marca o compasso deste filme. As premissas iniciais são concretas, horizonte urbano, cruising na praia. Eventualmente a coisa complica-se: o presente leva-nos ao passado em forma de memória perdida e cobrada, e um sonho inquieta-nos num desejo. O passado e o futuro compõem o tempo presente, nostalgias e desejos habitam paralelamente os corpos e mentes destes dois homens, as suas forças e as experiências. Que voltam a encontrar-se. Para voltar a sonhar.